segunda-feira, 2 de julho de 2007

Um texto de Carlos Machado.

SER E REPRESENTAÇÃO.
Possibilidades da obra plástica de António Gonçalves.



Depois de visitada a exposição patente neste momento no Palácio Galveias de António Gonçalves, tendo ainda em mente uma sua exposição anterior realizada no Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso (2004/2005), uma característica essencial parece ressaltar do conjunto de obras dado a ver: a encenação de um confronto de meios expressivos, que, a seu jeito, resulta sempre na supremacia da pintura. Com efeito, em Lisboa, aquilo a que se assiste é à montagem de duas salas opostas em que o diálogo se estabelece entre pinturas (de grande formato, com recurso ao acrílico, sugerindo formas vagas, luminosas, abstractas, como um gesto deliberado de recusa da figuração) e fotografias do autor. Por sua vez, estas fotografias surgem como reflexo simbólico e especular da actividade do pintor, assumindo-se como atitude autoreflexiva sobre os mecanismos de reprodução e circulação das obras, com tudo o que isso acarreta ao nível da sua apropriação canónica e da sua subsequente visibilidade pública. A denúncia auto-irónica da situação marginal do pintor no campo artístico é, desta forma, realizada pela apresentação dos mecanismos escuros e camuflados de consagração artística que, numa sociedade tardo-capitalista (no entender de Frederic Jameson) ou pós-industrial (segundo o mais ortodoxo Daniel Bell), caminham a par das forças económicas que movem o mercado de capitais.
Estas duas salas comunicam uma com a outra através de um hall onde, como cúmulo paroxístico deste diálogo interartes, se apresenta uma outra obra abstracta, com as suas consequentes reproduções a químico, bem como os próprios químicos que foram usados no processo. Por outras palavras, expõe-se a obra, as suas reproduções e os processos e mecanismos empregues nessa reprodução. A intenção é clara e surge numa linha de coerência com a exposição na sua totalidade: a denúncia do carácter falacioso das reproduções, realidades bem para além das obras, e o apelo à leitura dos quadros como símbolo primordial. Em termos benjaminianos, assiste-se à encenação da recusa do valor de exposição e à apologia do valor de culto da pintura, que deverá manter a sua aura, apesar de todas as mutações a que foi sujeita pelo experimentalismo vanguardista e neovanguardista do século transacto.
No fundo, esta mensagem é a que se depreendia já da exposição do Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso. Aí, o diálogo estabelecia-se entre duas salas de características diametralmente opostas. Uma, ampla e muito iluminada, expondo obras de grande formato em que as pinturas revelavam ainda uma influência do desenho, pela presença constante do traço a definir as formas. Estas eram suportadas por cores fortes, contrastantes, surgindo numa aparente simplicidade de meios, em traços minimalistas, assistindo-se à repetição de temas, motivos e cores, caindo-se numa aparente banalização de figuras que a outra sala viria a negar. De facto, neste outro espaço, apresentavam-se desenhos minúsculos que repetiam, num impulso tautológico, os motivos dos grandes quadros da sala inicial. Este segundo espaço era, por sua vez, intimista, pois reduzido e numa situação de densa penumbra, contrariada apenas pelas lâmpadas de baixa voltagem que iluminavam cada um dos desenhos. A atitude a que o visitante era forçado era à da circulação cuidadosa na sala, devendo deter-se forçosamente perante cada um dos desenhos, que exigia do espectador uma atenção máxima, nos antípodas daquilo que lhe era solicitado na primeira sala. Assim, neste caso, o diálogo que António Gonçalves criou surgiu entre a pintura e o desenho. Este segundo, por sua vez, viria iluminar a mente do espectador, forçando-o a uma atenção mais cuidada às formas realizadas nas obras, impedindo-o de adoptar uma postura de percepção distraída, anti-aurática, como a que Theodor Adorno, um dos grandes mestres da Escola de Frankfurt, diagnosticou nos produtos mass-mediatizados. A concentração no hic et nunc das obras conduz à reconsideração do gesto da pintura e à revisitação das obras plásticas de grande formato presentes na primeira sala. Por mais paradoxal que a frase possa parecer, a verdade é que a exposição era expressivamente intitulada “s/título (pintura)”. Por conseguinte, esta exposição concedia total liberdade ao sujeito no acto hermenêutico, aquando da reconstrução dos mecanismos geradores de sentido das obras, voltando a sua atenção sobre o próprio acto de leitura. A recusa do título surgia, portanto, como uma recusa da imposição de barreiras no acto de leitura, pelo condicionamento dos seus limites. No fundo, o jogo que aí se estabelecei entre escalas (grande/reduzida) e meios expressivos (pintura/desenho) constituiu uma reflexão sobre o acto hermenêutico que incide sobre a pintura, desconstruindo alguns dos clichés académicos sobre o que é e o sobre o que pode ser a pintura na época contemporânea, que assiste à proliferação dos mecanismos de reprodução das obras ad infinitum, assim como à banalização dos meios e materiais de uso industrial.
Em suma, assiste-se em ambas as exposições de António Gonçalves a um diálogo frutífero entre meios expressivos que leva a concluir que todo o acto de leitura é re(a)presentação (ou, em inglês, re-presentation), isto é, um gesto tautológico em que o ser surge duplicado. A obra constitui-se, então, pela sua existência material e pela sua duplicação especular em existências virtuais concretizadas pelo jogo de sentido que se estabelece nas suas inúmeras leituras. Nessa medida, depreende-se que o modo de re(a)presentação condiciona e determina a forma de constituição da obra, nesse jogo de máscaras em que o espectador surge como actor privilegiado. Por conseguinte, o carácter das obras dadas a ver como original e como cópia surge, em moldes nietzscheanos, como revelação do universo como vontade de poder e de representação. Neste universo, o sujeito livre encontra múltiplas possibilidades. Estas radicam na sua faculdade do juízo e no exercício da mesma sobre a perenidade de uma arte que, segundo António Gonçalves, não deixa de afirmar a sua vitalidade, em tempos alegadamente esgotados e pós-modernos: a pintura. Mesmo que a marginalidade seja uma das poucas possibilidades possíveis, o que é um facto é que a irónica reflexão encetada, mais séria do que parece, incide sobre questões prementes que, na cena contemporânea, malogradamente, pouca gente torna visível. Só este facto justifica a visita a esta última exposição.

Carlos Machado

1 comentário:

Maria disse...

Percebo a transcrição do texto.
No entanto acho que, para um bogue, textos demasiados extensos não são apelativos à leitura......

Continuação de bom e muito trabalho.