terça-feira, 8 de maio de 2007

Eurico Gonçalves escreve acerca da minha exposição

Recebi ontem, das mãos do Pintor Eurico Gonçalves, esta maravilhosa surpresa. Um texto referente à minha exposição no Palácio Galveias, que aqui apresento completamente inédito.
O meu muito obrigado ao Eurico por estas palavras.


António Gonçalves
Fotografia e Pintura “Sem Título”


No silêncio da noite e no mais absoluto sigilo, um bando de homens circunspectos, rigorosamente vestidos de fato preto, observam desenhos e pinturas de António Gonçalves, à luz velada do candeeiro público da cidade. São presumíveis marchands, ladrões, figurantes de um filme ou profissionais actores-manequins de moda masculina; aparentam ostentar riqueza e pseudo-bom gosto, junto de um automóvel de luxo.
À margem do mercado da arte, o pintor isola-se no atelier para, à luz clara do dia, ver a cor tímbrica das suas composições abstractas, que surpreendem pela simplicidade de concepção formal e cromática.
Na sua inocência controlada, o pintor respeita e acentua a pureza da cor lisa e contrastante, em amplas superfícies, contornadas pelo traçado irregular da linha que, na sua expressividade imediata, engendra formas e signos, articulados uns em função dos outros, no mesmo espaço topológico que, sendo bidimensional, não sugere profundidade nem volume.
A pintura é, antes de mais, uma superfície preenchida com formas e cores, dispostas segundo uma certa ordem, mais ou menos harmoniosa – parafraseando Maurice Denis.
Na sua pureza máxima, a linha e a cor são os elementos primordiais das composições abstractas de António Gonçalves, cujo impacto visual evidencia-se em telas de grandes dimensões. Ao poder fotogénico e sedutor da noite enigmática contrapõe-se à clarividência do dia na pintura amável e emblemática de António Gonçalves, cuja obra, na totalidade, vive da encenação de meios técnicos de expressão, aparentemente antagónicos ou divergentes, mas complementares nas intenções que os motivam: um deliberadamente objectivo e figurativo, voltado para o exterior; outro assumidamente subjectivo e abstracto, voltado para o interior. O primeiro é ainda uma forma de representação teatral, de conteúdo narrativo, de apurada técnica impessoal, fria, lacónica, quase sem emoção. O segundo permanece um meio de expressão pessoal e artesanal, totalmente executado à mão, pelo que não abdica da sensibilidade gráfica e cromática, em composições que estimulam o prazer de ver o que o olhar descobre despreconceituadamente.
O olhar descobre o que vê na fotografia e na pintura, capaz de distinguir antagonismos e de os inter- relacionar na fusão dos contrários, porque a alma humana é profunda e infinita como o mar e o céu.
Na obra de António Gonçalves, o paradoxo consiste em verificarmos que a pintura sendo uma arte subjectiva, está objectivamente próxima dos olhos e, por isso, é clara e nítida, enquanto a fotografia, sendo uma arte objectiva, cultiva a distância e o mistério de cenas obscuras, consoante o ângulo de visão.
Nas artes de representação, a fotografia está para a pintura como o cinema está para o teatro. Quando a pintura se emancipa e deixa de representar, torna-se abstracta e autónoma, perde a companhia das artes de representação e deixa de rivalizar com elas. O triunfo da arte abstracta faz com que seja olhada com um misto de estranheza e desdém pelo leigo, ou com viva admiração pelo entendido, que investe nela ao ponto de confundir o seu valor mercantil com o seu valor artístico.
Neste “mundo-cão”, em que são visíveis os mecanismos da promoção do mercado, da publicidade e da moda, compete a cada um saber distinguir o trigo e o joio, o autêntico e o falso.
A boa fotografia e a boa pintura quase dispensam a legenda, pelo que uma e outra são expostas “sem título”, atitude que o autor assume plenamente, desafiando o espectador a olhar e a interpretar livremente o que vê, “C´est le regardeur qui fait le tableau” (É o observador que faz o quadro).
O espectador completa o sentido da obra de arte. Sem espectador não há espectáculo. Tem razão o artista total Almada Negreiros, quando diz: “Não é a pintura que interessa, não é a escultura, não é nenhuma arte especial. O que me interessa é o ES-PEC-TÁ-CU-LO! E O ESPETÁCULO É VER!”.
Nestas artes do silêncio “Sem Título”, sem palavras, O ESPETÁCULO É VER, ao desvendar o que a noite oculta, e ao interpretar livremente, a luz clara do dia, a linguagem das cores e das formas.

Eurico Gonçalves

Abril / Maio 2007

1 comentário:

croqui disse...

Sábias as palavras do Mestre Eurico.

«É o observador que faz o quadro», sem dúvida que sim.

O artista, é um emissor de sensações! Tal como um compositor nas suas obras procura a melhor combinação de notas para conseguir a melodia perfeita, também António Gonçalves consegue uma harmonia de cores excepcional nas suas obras!

O resto sim, é com o espectador.
Como disse Theodor Adorno: «A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado.»

Aqui fica a humilde opinião de um recente admirador.
Mas quem sou eu para falar sobre arte?!
Para quê perder tempo a falar de arte quando se pode usar esse tempo a criar?
Além do mais, «Escrever sobre arte é como dançar sobre arquitetura»

Pedro E. Santos